Tensão específica do músculo humano in vivo: o que realmente sabemos?

  • 06-09-2025

A tensão específica (specific tension, ST) é a capacidade intrínseca de geração de força por unidade de área de secção transversal fisiológica do músculo. Em termos operacionais, trata-se do quociente entre a força máxima do músculo e a sua área fisiológica (PCSA), métrica diretamente relacionada ao número de sarcômeros em paralelo e, portanto, determinante da “qualidade” do tecido muscular independentemente do seu tamanho. O valor clássico de 22,5 N/cm² derivado de pequenos mamíferos é frequentemente usado como referência, mas sua transposição para humanos é problemática, pois quase todas as estimativas humanas são indiretas e exigem cadeias de inferências biomecânicas e neurofisiológicas (torque articular, braço de momento, ativação, complacência tendínea) que introduzem incertezas cumulativas .

Por que medir ST em humanos é difícil?

Em humanos, parte-se tipicamente do momento articular máximo (MVC) e converte-se esse momento em força tendínea usando o braço de momento do tendão no ângulo articular específico. Em seguida, a força do tendão deve ser particionada entre músculos sinérgicos (ou assumida proporcional à PCSA dos componentes), enquanto a PCSA do músculo de interesse é calculada a partir do volume (MRI/CT) dividido pelo comprimento ótimo de fascículo (ultrassom/MRI), com correção para a pennação. Cada uma dessas etapas pode ser medida diretamente, estimada, ou tomada da literatura — e as escolhas metodológicas afetam o valor final de ST .

O que esta revisão sistemática fez de diferente?

Os autores executaram uma revisão seguindo PRISMA: rastrearam 1.506 artigos, excluíram 1.436 por não reportarem ST, e incluiram 30 estudos (1983–2023), dos quais extraíram 96 valores de ST. Para reduzir vieses decorrentes das diferentes metodologias, criaram um sistema de pontuação que atribui peso maior a parâmetros medidos diretamente (por exemplo, medição do braço de momento no ângulo do pico de torque, correção para ativação submáxima/coeativação antagonista) e peso menor a estimativas/valores de literatura. O desfecho agregado foi então calculado como mediana ponderada pela qualidade do método, abordagem apropriada dado o viés à direita e a curtose da distribuição original dos valores de ST .

Principais resultados quantitativos

  • Amplitude observada: os 96 valores de ST variaram de 1,8 a 72,7 N/cm²; valores >60 N/cm² apareceram apenas em estudos pré-2004, sugerindo que técnicas mais recentes convergem para patamares menores e possivelmente mais acurados .
  • Mediana ponderada (melhor estimativa para humanos): 26,8 N/cm² (IQR 20–43), ao ponderar por qualidade metodológica; a média não ponderada foi 30,9 ± 19,1 N/cm² .
  • Estratificação por grupos musculares: medianas típicas foram flexores do cotovelo 53,4 N/cm², extensores do cotovelo 9,5 N/cm², extensores do joelho 29 N/cm², adutores do quadril 17,1 N/cm², flexores plantares 10,4 N/cm² e dorsiflexores 24,5 N/cm². Houve diferenças anatômicas marcantes: braço superior ~52,0 N/cm² vs perna distal ~11,2 N/cm²; coxa ~29,0 N/cm² vs perna distal ~11,2 N/cm² .
  • Idade e treinamento: idosos apresentaram ST menor (15,7 N/cm²) do que jovens (29,5 N/cm²). Intervenções de treinamento elevaram a ST (pré 25,9 N/cm² → pós 33,8 N/cm²), sustentando que adaptações neuromusculares aumentam a força por área e não apenas a seção muscular .
  • Composição de fibras: observou-se tendência inversa entre a % de fibras tipo I e a ST e tendência positiva com fibras tipo IIa, coerente com maior tensão específica associada a fenótipos mais rápidos .

Quem e o que foi mais estudado?

A literatura concentra-se em grandes grupos do membro inferior (quadríceps, tríceps sural), mas flexores do cotovelo também foram frequentes. Ao todo, somaram-se 413 músculos do quadríceps, 184 flexores do cotovelo e 73 gastrocnêmios laterais. A maioria das amostras foi de adultos jovens; 94% dos valores referem-se a extensores de joelho, flexores de cotovelo ou flexores plantares, o que reforça a necessidade de cautela ao extrapolar para grupos menos estudados .

Rigor metodológico e impacto no valor de ST

Trinta variações metodológicas foram identificadas. Nenhum estudo atingiu pontuação máxima no escore de qualidade; os melhores (incluindo abordagens com correções para ativação, coativação e braço de momento medido) concentraram-se em músculos do membro inferior e ainda assim produziram ampla variação (9–60 N/cm²). Curiosamente, uma regressão linear indicou leve tendência de redução do ST com aumento da pontuação de qualidade, sugerindo que protocolos mais rigorosos tendem a podar superestimativas históricas. Com a ponderação por qualidade, a mediana converge para 26,8 N/cm², que os autores recomendam como melhor valor de referência para músculo humano in vivo .

Fontes potenciais de erro e limitações

A determinação de ST é sensível a:

  1. Ângulo articular e braço de momento na MVC (o braço de momento varia com ângulo e ativação);
  2. Particionamento da força entre sinérgicos (PCSA relativa, EMG e suposições de coativação);
  3. Arquitetura muscular no instante da contração (comprimento de fascículo e pennação variam com ângulo/intensidade);
  4. Correção para ativação submáxima (twitch interpolation) e coativação antagonista.

O escore de qualidade privilegiou medição direta desses itens (quando viável), mas nenhum estudo conseguiu medir todas as variáveis nas condições exatas da MVC para todos os músculos envolvidos, deixando margem para incerteza residual. Ainda assim, o emprego de mediana ponderada, triagem independente por avaliadores e consideração de confundidores (idade, sexo, treinamento) mitigou vieses sistemáticos detectáveis .

Implicações práticas

  • Pesquisa e modelagem: Musculoskeletal models e cálculos de força “máxima” por PCSA devem preferir 26,8 N/cm² como ponto de partida para músculo humano, ajustando por grupo muscular, idade e estado de treinamento quando tais dados estiverem disponíveis.
  • Treinamento e reabilitação: A ST responde ao treinamento, indicando ganhos de eficiência contrátil além da hipertrofia. Em avaliações longitudinais, mudanças de torque devem ser interpretadas em conjunto com arquitetura muscular para distinguir hipertrofia de incremento de ST.
  • Clínica: Em sarcopenia, neuropatias e pós-imobilização, reduções de força não se devem apenas à perda de massa; a ST pode declinar por alterações neurais e de propriedades contráteis, apoiando intervenções que combinem força máxima, controle neural e arquitetura.

Conclusão

O corpo de evidências sintetizado nesta revisão sistemática sustenta que a melhor estimativa atual da tensão específica do músculo humano in vivo é 26,8 N/cm². Essa cifra resulta de um balanço entre amplitude histórica de valores, refinamento metodológico recente e ponderação por qualidade, e deve substituir extrapolações de modelos animais quando se busca precisão em humanos .

Referência
Persad LS, Wang Z, Pino PA, Binder-Markey BI, Kaufman KR, Lieber RL. Specific tension of human muscle in vivo: a systematic review. Journal of Applied Physiology. 2024;137:945–962. doi:10.1152/japplphysiol.00296.2024.

 

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