Os professores Bernardo N. Ide e Denise Vaz Macedo, Universidade Estadual de Campinas, identificaram erros gravíssimos em um trabalho que objetivava analisar o conhecimento de profissionais de educação física e enviaram uma carta ao editor pontuando os equívocos colocados.
O trabalho publicado por Silva e colaboradores 1 analisou o conhecimento de profissionais de educação física no tocante ao emprego das pausas durante sessões de treinamento de força. No entanto, foram identificados vários equívocos nas alternativas consideradas como corretas por parte dos autores do trabalho.
Os autores empregaram um questionário de seis questões de múltipla escolha, que foi respondido por 39 sujeitos (6 estagiários e 33 professores já formados). O principal resultado reportado foi que a média de acerto nas questões foi de 48%, o que levou os autores a concluírem que os participantes possuíam um baixo nível de conhecimento sobre o assunto em questão.
Todavia, as alternativas e questões não apresentam coerência científica e o questionário proposto, portanto, não permitiu avaliar o nível de conhecimento dos voluntários, ou de qualquer outro profissional.
O trabalho discutia as pausas no treinamento de força. Veja a implicância metabólica da manipulação dessa variável
Como pontuado pelos autores, a literatura reporta que durante as pausas entre os exercícios de alta intensidade ocorrem processos metabólicos como a ressíntese de fosfocreatina (PCr), o tamponamento de H+ e a remoção do lactato produzido no meio intra, para o meio extracelular2,3. Especificamente a ressíntese de PCr pode ser considerada como o principal processo metabólico intramuscular ocorrente durante as pausas. O processo envolve a re-fosforilação da creatina, com gasto de ATP pela enzima creatina quinase, e possui um padrão bi exponencial, com um componente rápido e outro lento4.
A literatura reporta que a ressíntese de PCr é dependente da disponibilidade de oxigênio para a musculatura. Indivíduos treinados em resistência — e consequentemente com maior potência e capacidade aeróbia — são capazes de ressintetizar o substrato mais rapidamente do que sedentários 3. Consequentemente, a ressíntese de PCr é dependente do tempo das pausas entre exercícios 3, definindo as pausas como curtas (incompletas para ressíntese de PCr) ou longas (completas para ressíntese de PCr).
Agora veja as incoerências encontradas nas questões propostas pelos autores
Questão 1
A questão indagou sobre o tempo de pausa mais adequado entre séries em uma sessão de treino com caráter hipertrófico.
Considerando o treinamento de força e a resposta hipertrófica muscular, é importante primeiramente destacar quais os principais estímulos indutores dessa adaptação. São eles: os estímulos mecânicos promovidos pela contração muscular per se 5–7, a alteração no estado energético celular 8,9, as ações e interações entre hormônios, os fatores de crescimento e determinados nutrientes 10–12, além da ativação de células satélite, cujo mecanismo de ação é a inserção de novos mionúcleos 13–16.
Relacionado com a manipulação das pausas, recentemente Grgic e colaboradores 17 realizaram uma revisão sistemática sobre os intervalos longos e curtos entre as séries e exercícios no treinamento de força, bem como seu impacto na resposta hipertrófica muscular.
Os intervalos de recuperação considerados como curtos variavam de 20 a 60s entre as séries, já os mais longos variavam de 80 a 240s. Os resultados do estudo ilustraram que, tantos intervalos mais longos, como os mais curtos, poderiam contribuir para a otimização da resposta hipertrófica muscular. Isso porque treinamentos com intervalos mais curtos entre as séries enfatizam o crescimento muscular através de uma maior magnitude no estresse metabólico – o que pode ocorrer durante esforços submáximos e quando realizados exercícios monoarticulares – enquanto que os estímulos de treino que empregam intervalos mais longos (próximos aos esforços máximos e em exercícios multiarticulares) possibilitam um maior volume de carga, tensão mecânica e possíveis danos teciduais, enfatizando a resposta hipertrófica devido a um maior estresse mecânico.
Ou seja, dependendo da ênfase nos diferentes mecanismos (estresse mecânico e/ou estresse metabólico), vários tempos de pausa podem ser aplicados em uma sessão de treino com objetivo hipertrófico.
As alternativas disponíveis pelos autores para a questão eram: a) 1 a 2 minutos; b) 30 a 60 segundos; c) 3 a 5 minutos e d) 10 a 30 segundos, sendo a alternativa considerada como “correta”, a alternativa “b” (30 a 60 segundos).
O tempo de 30 a 60 segundos considerado pelos autores como o “mais adequado” pode ter sido decorrente dos resultados do trabalho de revisão conduzida por Salles e colaboradores 18, que foi citado na discussão. Tal recomendação foi pautada apenas nas influências dos intervalos de recuperação nas respostas agudas do hormônio do crescimento. Entretanto, as mais recentes observações experimentais não permitem tamanha precisão e inflexibilidade na elaboração de sessões de treinamento de força voltadas a resposta hipertrófica.
No questionário realizado no estudo, as questões não apontam aspectos referentes ao momento do planejamento, volume e intensidades empregadas, mecanismo enfatizado para engatilhar as respostas hipertróficas (estresse metabólico ou mecânico) e o nível de treino dos indivíduos que seriam submetidos a sessão. Desconsiderando as inúmeras possibilidades de resposta, os autores concluem que somente cerca de 50% dos profissionais tinham conhecimento sobre o tema.
Questão 2
A questão indagou sobre o tempo de pausa mais adequado entre exercícios no treinamento de força máxima. As alternativas disponíveis eram: a) 30 segundos a 1 minuto; b) 1 a 3 minutos; c) 2 a 5 minutos e d) 5 a 8 minutos.
Nesta questão, identificamos uma inconsistência entre a discussão realizada e a alternativa considerada como correta. Na discussão, os autores afirmaram que “as pausas nesse tipo de treinamento devem ser longas para ocorrer uma ressíntese completa de PCr e uma grande recuperação das fibras do tipo IIA e IIX. Quando a pausa for completa (3 a 8 minutos), ocorre a ressíntese da PCr de forma integral, renovando assim as reservas”. Entretanto, a alternativa considerada como correta foi apenas a alternativa “d” (5 a 8 minutos), embora as alternativas “b” e “c” também pudessem encaixar-se no critério proposto.
O próprio enunciado da questão 6 coloca pausas de 2 a 5 minutos como corretas para os treinos em questão. Adicionalmente, resultados reportados nas referências citadas, como o posicionamento do Colégio Norte Americano de Medicina do Esporte 19 e o trabalho de Scudese e colaboradores 20 reforçam que, em treinos de alta intensidade, o uso de intervalos de 3 a 5 minutos de recuperação seriam suficientes para otimizar o desempenho durante tais treinamentos.
Questão 4
A questão indagou sobre o tempo de pausa mais adequado entre séries no treinamento de potência. As alternativas disponíveis eram: a) 2 a 5 minutos; b) 30 segundos a 1 minuto; c) 5 a 7 minutos; d) 7 a 9 minutos.
Observamos inconsistências tanto no enunciado como nas alternativas. O treinamento voltado ao desenvolvimento da potência pode ser realizado através de diversos métodos como a pliometria, os levantamentos olímpicos e os próprios treinos de força tradicionais 21, mas a questão não especificou nenhum deles.
Assim como na primeira questão, aspectos como o momento do planejamento, volume, intensidades empregadas e mecanismo enfatizado para o desenvolvimento da potência (força ou velocidade de contração) não foram pontuados.
Pausas entre séries para treinos de força máxima e vários outros métodos voltados ao desenvolvimento máximo da potência neuromuscular devem ser completas para proporcionar uma boa ressíntese da PCr. Todavia, na questão 2, que versou sobre o tempo de pausa mais adequado entre exercícios no treinamento de força máxima, os autores consideraram como correta a alternativa “d” (5 a 8 minutos). Na presente questão sobre os treinos de potência, a alternativa considerada como correta foi apenas a “a” (2 a 5 minutos).
Considerações finais
Com base na análise realizada sobre o questionário, sugerimos que os autores revisem os resultados do trabalho como um todo. As alternativas e questões não apresentam coerência científica. O questionário proposto, portanto, não permite avaliar o nível de conhecimento dos voluntários, ou de qualquer outro profissional que leia o artigo sobre o tema.
Acesse a carta na íntegra através do link abaixo
Referências
1 Silva E, Marques MA, Germano MD, Sindorf MAG, Marchetti PH, Evangelista A, Lopes CR. Análise qualitativa sobre o conhecimento da pausa de treino durante uma sessão de treinamento de força por profissionais de educação física. Rev CPAQV - Cent Pesqui Avançadas em Qual Vida - CPAQV J 2017; 9: 1–8.
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